Por Eduardo Nobel, Sofia Marchetti e Verônica Nunes

Na noite agitada de 26 de abril de 2023, a Avenida Paulista estava banhada de pessoas manifestando sua insatisfação com a nova proposta do Novo Ensino Médio. Gritos de luta por um país com educação de qualidade eram erguidos em coro, com os punhos para o alto. Cartazes, em letras garrafais, ficavam expostos na rua mais alta da cidade de São Paulo.

No mar de pessoas, encontramos ela: uma senhora que foi professora de História em escola pública por mais de 25 anos e que, mesmo agora, aposentada, continua insaciada, lutando pelo próximo e pela educação.

De imediato, naquele primeiro contato, pudemos sentir sua personalidade: a personificação do ativismo. Uma mulher que sempre se envolveu em atividades sociais e tomou a frente de causas importantes.

Foi entre um café com leite e um suco de laranja da padaria Cepam, no bairro da Vila Prudente, num dia ensolarado de setembro, que descobrimos quem é a Neuzinha, apelido pelo qual é conhecida pelos mais próximos. Sua vida é um livro aberto, exceto por um quesito: a idade. Ela não gosta de revelar os números e brinca que está entre os 68 e os 73.

– Quem é a Neuza Aparecida de Oliveira Peres?

Após ser questionada, seu olhar divagou. Depois de alguns segundos, respondeu:

– Eu! – apontando os dedos indicadores para si mesma, com um sorriso tímido.

Arteira, como ela mesma se julga, usava acessórios reluzentes em suas orelhas, pescoço e punho, com um detalhe especial de dois óculos sobre o cabelo castanho, que contrastavam com o rosto natural e delicado.

Logo, ela começou a tecer lembranças da infância. Analfabetos, os pais sentiam a necessidade de incentivar os quatro filhos a estudarem, pelo menos até o ensino primário, considerado suficiente na época. Mas uma urgência financeira a colocou em uma encruzilhada, durante a adolescência.

Neuza teve de escolher: os livros ou o trabalho. Ela abandonou os estudos. O bairro do Ipiranga, com sua indústria de confecções e tecelagem, tornou-se o palco desse novo capítulo da sua vida. Contudo, repentinamente, teve de seguir uma nova direção.

– Foi o período em que perdi os meus pais.

A educação de Neuza era semelhante às idas e voltas de uma agulha nos retalhos do patchwork. Anos depois, conseguiu voltar a estudar, mas, antes de finalizar os aprendizados, casou-se e focou no matrimônio.

Depois de criar os três filhos – Guilherme, Cecília e Ricardo – decidiu conquistar sua independência: prestou vestibular já adulta. Seu sonho era fazer graduação de Arquitetura e Urbanismo, mas, pela visão do então marido, fazer esse curso era "coisa de homem".

Até que a fome de educação bateu à porta novamente. Neuza foi alimentada pela curiosidade de fazer graduação de História. Quando entrou na universidade, um pássaro de fogo ressurgiu em sua vida: o fogo da liberdade; a chama de lutar por si mesma e pelos outros. No ápice do momento, marcou o braço com uma delicada e colorida vitória.

Freedom, tatuei quando entrei na faculdade. Pude gritar pela primeira vez.

Com os olhos emocionados e o sorriso exalando orgulho, Neuza conta que a militância entrou em sua vida de uma forma avassaladora. Mesmo achando que o seu maior objetivo era ser pesquisadora, as salas de aula chamaram-na. Não deu outra. No primeiro ano de faculdade, já lecionava.

Neuzinha passou a ter uma vida extremamente ativa: dirigia uma turma de teatro na escola, era afiliada de um grupo socialista e tomava a frente das decisões da APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo). A dedicação ao trabalho começou a trazer problemas para o relacionamento. Que história é essa de que lugar de mulher é onde ela quiser?

No meio da entrevista, percebemos um novo olhar, um olhar sagaz envolto num quê de tristeza. Anos 90. Casamento. Patriarcado. Chave do carro escondida. Autoritarismo. Carro abarrotado com a sua vida. Virou o rosto e levantou as sobrancelhas:

– Ele me desafiou – a frase arrepiou até o último fio.

Neuza se divorciou. Decidiu seguir sua vida sozinha e focar no ativismo.

Ela tinha uma missão clara em mente: alertar todos para os perigos da privatização do ensino público e do Estado mínimo. Ela não poupava esforços para conscientizar professores sobre as condições de trabalho, salários dignos e, especialmente, a deterioração da estrutura educacional.

Mas a pandemia de Covid-19 chegou, paralisou o mundo e estagnou a vida de Neuza. Apesar de ter conseguido a aposentadoria no final de 2019, ela sentia falta de lutar por algo maior que a própria vida. O artesanato, que aprendeu com a mãe quando tinha dois anos, foi um respiro, mas não o suficiente.

A fome de existir surgiu. O vazio pesava. A dor aumentava.

– Várias vezes pensei em acabar com a minha vida – os dedos livres se entrelaçaram. A voz embargou e os olhos mergulharam, temerosos, na escuridão.

Superado o choro preso, uma chama ressurgiu. Neuza ressurgiu das cinzas. A militância ressurgiu. Após um período de grande crise depressiva e existencial, o que a trouxe de volta à vida foi a luta pela educação, por meio da Aproffib (Associação dos Professores de Filosofia e Filósofos do Brasil).

Ela percebeu que precisava lutar não só por si mesma, mas por todos os alunos, crianças, adolescentes e adultos que necessitam de uma educação de qualidade.

Houve tempos em que Neuza conseguia entrar nas escolas com os sindicatos educacionais. Hoje, uma barreira aparentemente intransponível se ergueu, impedindo que sindicalistas, como ela, andem pelos corredores das instituições de ensino.

Mas ela nunca cogitou a possibilidade de desistir.

– Não dá – passou a mão no coração – a luta sempre foi árdua, e agora é ainda mais. Dar as costas seria um ato de covardia.

Para dar mais garra e energia nessa luta diária e constante, ela revisita o passado. Neuza lembra de um dos seus alunos do Ensino Médio, em 2008. Enquanto buscava realizar uma pós-graduação na USP (Universidade de São Paulo), ela descobriu um programa de pré-iniciação científica voltado para alunos de escolas públicas e inscreveu os seus.

– Um menino da favela, que nunca pensou que sairia de lá, que achou que não teria educação, que pensou que nunca poderia e conseguiria estudar na USP, conseguiu.

Hoje, esse aluno é professor de Física em uma escola particular. Seus olhos jaziam um brilho de esperança para o futuro do ensino no país.

– Quando você vai parar?

– Não vou parar até o último minuto da minha vida – afirmou com convicção.

A curiosidade sempre vai ser plantada, a liberdade alimentada e a fome, saciada (por pouco tempo). E a Neuza? Vai existir. Seria egoísmo demais viver em sociedade e não lutar pelos seus. É militância na voz e um desejo no peito: educação para todos, por todos.

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O projeto Aproffib é uma Associação de duração indeterminada e sem fins lucrativos, de caráter educativo, cultural, formativo, de análise filosófica, econômica e político-social. Seu objetivo é tornar as disciplinas de Filosofia e Sociologia obrigatórias no Ensino Médio.

Os professores entendem que estas aulas formam cidadãos mais justos, igualitários e preparados para um debate público, além de expandir seus horizontes para o mundo das artes.

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