Por Luiz Felipe Guimarães, Luiz Henrique Cisterna e Nathan Raileanu

Moisés tem por volta de 1,68 metros, cabelos brancos e está sempre de paletó preto. Possui um olhar firme, uma postura enérgica e empoderada. Nasceu em Pernambuco, na cidade de Barreiros, em 1960. Mas quem o vê agora, comunicativo e esbanjando espontaneidade, não imagina todas as fomes que já passou.

Durante a infância no interior pernambucano, sofreu com diversas agressões – físicas e psicológicas. A mãe não aceitava sua sexualidade. Entre uma cintada e outra, dizia que ele tinha que virar homem. O pai, ausente, abandonou a família para viver com outra mulher e a nova família, fruto do relacionamento extraconjugal.

A escola, que deveria ser um local de acolhimento, também se transformou em trauma.

Frango. Pica-bosta. Viadinho. Palavras que escutava com frequência e jamais se esqueceu. Sempre que o pequeno Moisés chegava em uma roda, todos dispersavam. Tinha uma atividade esportiva? Nem o colocavam na lista.

Com poucas condições, raramente levava merenda para o recreio. Até que um colega – Álvaro – reparou:

– Moisés, por que você não traz lanche?

– Porque sou pobre.

– Então vou dar meu lanche para você todos os dias e comprar o meu na cantina.

Ali, eles firmaram mais do que um acordo: uma amizade. Pouco depois, Álvaro levou-o para conhecer sua casa e propôs que morasse lá. Seus pais não foram contra, contanto que a mãe de Moisés permitisse. Ela aceitou. A condição era que o filho sempre passasse em casa para pedir a "bença".

O acolhimento da família adotiva escondia uma exploração infantil, que Moisés só conseguiu reconhecer na vida adulta. Durante o tempo em que ficou naquela casa – dos 8 aos 18 anos –, desempenhou os mais variados afazeres domésticos.

Nas datas comemorativas, presenciava a família trocando presentes, beijos e abraços. Não recebia nada. Não tinha nada. Não existia afeto para ele. Era como se não estivesse ali.

– Na Páscoa, ficava apaixonado pelos ovos que eles ganhavam. Quando jogavam a embalagem no lixo, eu pegava. Achava bonita e guardava. Na minha mente, falava: "Um dia vou ter um".

Desse período, Moisés lembra-se de seu primeiro e único presente: uma roupa de listras verde-musgo com detalhes em marrom. Seus olhos enchem-se de lágrimas com essa recordação.

– Foi o primeiro Natal feliz. Eu me senti uma criança muito importante.

O presente, porém, foi dado pela dona da casa após a cobrança feita por uma das empregadas para que o menino Moisés também pudesse ter uma roupa nova, além dos mesmos trapos que já usava há anos.

Quando atingiu a maioridade, decidiu tomar um novo rumo:

– Vou para São Paulo, para mudar de vida!

A decisão de deixar tudo para trás foi difícil, mas ele tinha uma esperança: chegar até a casa dos tios, "custe o que custar". Viajou de carona com um caminhoneiro e usou o próprio corpo para "custear" o percurso.

Ele sempre entendeu o afeto apenas como algo carnal, exclusivamente sexual, consequência de uma vida marcada por ausências.

Os parentes, que não sabiam da sua ida repentina, não foram receptivos, mas deixaram ele ficar.

– Moisés? Você? Como veio parar aqui?

Ao chegar no "bairro do aeroporto" ou, como chamavam, "favela do buraco quente", viveu o inverso do sonho. Passou a sofrer com o preconceito da rua e, mais uma vez, com o menosprezo dentro de casa. Ouvia que não servia "nem para lavar louça".

O tio ainda fazia questão de afirmar que não queria homossexuais na família, que aquela casa era de homem. Mesmo assim, Moisés não abaixava a cabeça.

– Fazia questão que as pessoas soubessem que eu era gay. Essa é a minha vida.

Cercado por um ambiente sem afeto e hostil, abraçou as oportunidades de trabalho que apareceram, juntou suas economias e mudou de barraco.

No serviço, porém, precisou esconder a sexualidade para se manter empregado. Instinto de sobrevivência. A pouca qualificação também dificultava – tinha estudado somente até a sétima série. Depois de 15 anos longe da escola, decidiu terminar os estudos.

Novamente, deparou-se com a intolerância. Dessa vez, de uma professora, quando estava prestes a se formar. Ela excluía-o dos ensaios da formatura, sem nenhuma razão explícita.

Indignados, os amigos de sala – diferente daqueles que o isolavam na infância – uniram-se, reivindicando sua participação na colação de grau. Eles também o ajudaram a alugar uma beca para a cerimônia. Em 1996, no Clube Ipê, Moisés formou-se.

– Foi uma formatura muito linda.

Em retrospectiva, todas as áreas de sua vida – acadêmica, profissional, familiar, amorosa – foram turbulentas. Ele nunca conseguiu se estabilizar. Sentia-se perdido. Tinha empregos inconstantes, queria trazer a família do Nordeste e, ao mesmo tempo, viver o grande amor.

A personalidade agitada fez com que tomasse algumas decisões que hoje entende como precipitadas. Perdeu uma paixão verdadeira por priorizar o bem-estar da mãe e da irmã, mesmo depois de tudo o que sofreu na infância. Seu grande amor partiu para Rondônia a trabalho e voltou mais duas vezes para buscá-lo, mas Moisés negou. Tinha de trazer a família para São Paulo.

Demorou para perceber que se importava demais com os outros, sem reciprocidade. Nem ele se priorizava. Mesmo estando rodeado de pessoas, sentia-se sozinho.

Todo esse acúmulo de vivências, traumas e rejeições emaranhavam-se num nó. Separação dos pais, falta de emprego em São Paulo, solidão com um relacionamento encerrado abruptamente. Por quatro vezes, tentou tirar a própria vida.

Há seis anos, Moisés vive um novo relacionamento. Ele diz amar seu parceiro, porém não sente retorno desse afeto. Com o passar do tempo o convívio tem se tornado frio, distante e instável.

Em 2020, com o isolamento social causado pela pandemia de Covid-19, a solidão aumentou ainda mais. Ele começou a preencher o vazio interior com objetos que achava na rua, principalmente tampinhas de garrafa. Virou um acumulador.

Foi em meio a esse turbilhão que conheceu a ONG EternamenteSOU, um local de acolhimento para idosos LGBTQIAPN+. Ele não esconde que lá entendeu, pela primeira vez, o que é o afeto.

– Me sinto acolhido. As pessoas que frequentam o EternamenteSOU são companheiras. Dão amor e carinho, independente da classe social. A gente não precisa de coisa material, precisa mais de um abraço. Tenho assistência, estou sabendo lidar com tudo isso trabalhando minha saúde mental.

Com as rodas de conversa, os dias de teatro e o acompanhamento da psicóloga Valéria, que se tornou uma figura fundamental, está conseguindo cicatrizar suas feridas. Finalmente, está cuidando de si.

A garagem, antes lotada de caixas, vem se esvaziando. Agora, com 63 anos, Moisés sobrevive como vendedor de roupas de brechó, conta com a ajuda do projeto e o apoio incondicional de seus sobrinhos e sobrinhas, que faz questão de enumerar nome por nome:

– Leonardo, Thamires, Thainá, Yuri, Brian, Vitória, Lorenzo, Lucas, Breno e Alan.

Mesmo que a vida tenha o preparado, ainda teme o futuro e tem medo de parar em um asilo. A luta contra a depressão continua. Cada abraço, conversa, e cuidado importa.

Moisés atravessou um mar de vazios, até perceber que o mais importante é o amor próprio.

– Aprendi isso: para amar alguém, primeiro é preciso se amar.

Eternamente SOU
Saiba mais

A EternamenteSOU, criada em 2017, é uma associação sem fins lucrativos focada no público idoso LGBTQIAPN+. A organização tem como objetivo desenvolver atividades, serviços, atendimentos e acolhimento psicossocial para as pessoas que sofrem algum tipo de intolerância ou preconceito, como o etarismo.

A ONG, além de incentivar a inclusão social, proporciona a garantia de direitos humanos, cidadania LGBTQIAPN+ e uma velhice digna e ativa para cada integrante.

Conheça mais sobre o projeto neste link