– Papai do céu, quero acordar menina, por favor.
Essa era a oração que fazia todas as noites antes de dormir. Ao amanhecer, o primeiro ato do dia era levantar a coberta e descobrir se o milagre havia sido atendido. Não era, e por anos não foi.
A única reação possível era chorar. Foram 39 anos chorando. Mas de quem é esse choro?
Em um dia cinza, no sétimo andar de um prédio moderno e branco, uma porta se abre. Um sorriso marcado pelo batom vermelho cativa quem observa. O cabelo longo com ondas lembra o de uma sereia. Então uma voz delicada e tranquila reverbera:
– Maria Eduarda, prazer.
Mesmo com um sorriso, os olhos e as mãos transmitiam melancolia e agitação. Eduarda, como gosta de ser chamada, teve de apresentar primeiro quem era no passado – o Eduardo.
Ela nunca aceitou o corpo que tinha, mas teve de manter isso em segredo. Por isso, toda a infância, a adolescência e parte da vida adulta são contadas no masculino, a partir das vivências do homem que ela tentou – e muito – ser.
Eduardo foi um escudo ao longo dos anos, mas deixava brechas. Não ganhava bonecas, então as montava. Passava os batons da mãe, mas tinha de tirar. Os vestidos e saltos que colocava, logo eram escondidos no guarda-roupa.
Ele foi se encolhendo até que… levou um chute, literalmente. Forte. Maldoso. No corredor da escola. Foi – junto com o sonho de ser mulher – empurrado para um casulo escuro e apertado.
O que era para ser a adolescência com as tão sonhadas cartas do primeiro amor e festas do pijama, não aconteceu. A escola transformou-se em angústia. Para não sofrer mais, escolheu voltar para casa e não sair mais. Abandonou os estudos.
Eduardo sobreviveu por anos trancado no quarto, sozinho.
A única forma de recuperar o tempo perdido foi fazer supletivo. Depois, também tomou coragem e começou a faculdade de Marketing. Não satisfeito, fez uma pós em Big Data, Comunicação e Marketing. Tornou-se o primeiro pós-graduado da família.
Nessa jornada, decidiu encarar outro aspecto da própria vida: a fé. Pesquisou sobre sua história e descobriu que era criptojudeu, ou seja, que a família foi obrigada a se distanciar da religião por causa da Inquisição.
Decidiu voltar ao judaísmo. Começou na dança folclórica israeli, fez parte do Movimento Juvenil Judaico Chazit Hanoar e frequentou sinagogas. Cantor, ele se apresentou nas Macabíadas (Jogos Olímpicos da Comunidade Judaica) em Israel, em 2013.
Foi após o evento que um tribunal rabínico discutiu sua conversão. Eduardo passou a ter um nome em hebraico: Davi.
Apesar da conquista, na religião, na faculdade, no trabalho, e até mesmo na comunidade LGBTQIAPN+, continuava sendo visto da mesma forma: um menino gay, reservado. Mas ele sabia que não era.
A Eduarda sempre existiu e vai existir até o último bater de asas das borboletas. Isso ficou evidente quando, já adulto, ganhou de presente do namorado um biquíni vermelho e se olhou no espelho.
– Eu não via mais Eduardo ali, eu olhei profundamente no olho da Duda. É como se eu olhasse uma menina na masmorra – segurou a respiração relembrando as emoções que sentiu naquele dia.
Ele tinha que resgatar aquela princesa, a Duda, aos poucos, pois a escuridão daquela prisão sufocava-a. A depressão e os pensamentos de que poderia machucar a si mesmo começaram a ocupar aquele espaço. Dali em diante, decidiu fazer um corte no casulo.
Deu o mais importante dos passos. Deixou o Eduardo para trás e encarou a verdade que sempre soube: era uma mulher trans. Agora não é mais ele, é ela.
Mas não seguiu sem se despedir do "irmão gêmeo", do protetor que a acompanhou nessa jornada.
– Eduardo, te agradeço muito por todo o cuidado, todo o carinho que teve comigo. Você foi o neto preferido da vó Rosa, um irmão muito carinhoso e um filho responsável. Você vai estar sempre dentro de mim e prometo guardá-lo com muito carinho, mas agora é hora da borboleta voar honrando toda a sua história.
Eduarda começou a viver um sonho, mas que era limitado – só ela e os amigos próximos do Instagram sabiam que havia uma mulher ali. As laces e a maquiagem ficavam retidas naquele mesmo apartamento moderno, no sétimo andar.
Eduarda precisava de apenas uma palavra para sair por completo do casulo: o sim da mãe. Foram dias de teorias e medos, até que ela tomou coragem de admitir que o Eduardo, com quem a família conviveu por longos anos, não existia mais.
Ela esperava que, dali para frente, as coisas se tornassem um pesadelo. Porém, foi surpreendida. A mãe, religiosa, ouviu tudo atentamente e foi dando conselhos. Desejou que a filha fosse feliz. A Eduarda estava, oficialmente, livre para voar.