Por Luiz Felipe Guimarães, Luiz Henrique Cisterna e Yasmim Santos

A vibração das cordas ressoa dentro da alma e expande para toda a caixa. A alma é um pedaço de madeira cilíndrica, que sustenta o interior do violoncelo. Para quem toca, é um som infinito que acalenta a alma, a parte imaterial, o princípio da vida.

Esse é o caso de Ana Nunes, uma designer de 25 anos e 1,60 metros, de cabelos curtos e tingidos de fogo. Dotada de simpatia e veias artísticas. Sempre desenhou, mas foi com o pai José, na infância, que teve o primeiro contato com um instrumento: o violão.

As marchinhas e uma canção de ninar tomam espaço na memória de Ana. Mas nunca passaram de uma lembrança, já que as crises de esquizofrenia e a tetraplegia espástica do pai distanciaram a relação dos dois.

Mesmo com vontade, ela nunca aprendeu a tocar violão. Até os 18 anos, não tinha se entregado às artes.

A condição financeira e a realidade de José, acamado há oito anos, fizeram com que ela tivesse uma única função: ser alicerce. Os sonhos, logo, ficaram na gaveta; os boletos, em cima da mesa. E ela não sente vergonha de admitir: o dinheiro sempre foi uma questão.

Já na infância, quando os problemas de saúde começaram, ela não conseguia pedir dez centavos para comprar bala.

Com os olhos fixos no chão, como quem revive na memória uma cena, Ana cessou o tom doce da voz e ficou em silêncio. Depois de alguns segundos, voltou.

– Meu Deus! Muitos flashbacks na minha mente.

Aos 18 anos, teve de superar a adolescente "indefesa e assustada" que era e sair ao mundo. Junto com a mãe, técnica em enfermagem, assumiu a responsabilidade de levar alimento à casa. O primeiro emprego foi ser professora de inglês.

– Tenho que trazer dinheiro para casa – afirma – na primeira de dez vezes em que fala sobre sua principal preocupação: dinheiro.

O talento para o desenho, as técnicas de canto aprendidas por um ano no Instituto Baccarelli e a vontade de tocar ficaram para trás na vida da jovem, que não enxergava nas suas qualidades uma forma de gerar renda.

Logo, a fome existencial chegou. "E eu? O que eu faço para mim?".

Veio à tona a recordação de tocar um violoncelo pela primeira vez e sentir a vibração das cordas pelo arco de crina, que seus pequenos e delicados dedos seguravam. Isso aconteceu ainda no Ensino Médio, quando visitou uma amiga que a indicou o Projeto Guri.

– Desculpa, gente. Flashback.

Na corrida contra o tempo, pois o programa só aceitava jovens de até 18 anos, Ana se matriculou faltando duas semanas para chegar aos 19.

A garota baixinha mal imaginava que um instrumento de 1,10 metros se tornaria o seu remédio natural contra a ansiedade – um transtorno que ela carrega há anos – e a depressão. Ana sem o Callum (nome dado por ela para o Cello), como ela descreve, "é uma pessoa muito mais surtada", incapaz de reconhecer a própria capacidade. O som grave das cordas virou sinônimo de paz.

– Muitos flashbacks.

Mas a mente continuava triturando o pensamento de que ela já estava velha e atrasada, se comparada aos outros alunos do Guri. O que ela tinha, na realidade, eram preocupações demais, mas que o contato com a música colocou em segundo plano.

Ana também passou a ter com quem desabafar as mágoas do passado e os fardos do presente, com a assistência social do projeto.

– Acabou se tornando um porto seguro e isso me ajudou psicologicamente com a vida [...] Tenho vínculo com essas pessoas, tenho vínculo com a música.

A vida profissional e acadêmica, com a faculdade de Design, tornaram o acesso à cultura mais difícil, mas não impossível. Na pandemia, ela assistia às aulas online do projeto enquanto resolvia as demandas do estágio e, na volta ao presencial, ia quando podia.

A menina da comunidade de Heliópolis conseguiu subir aos palcos da música clássica. O Guri abraçou Ana, além de ser o único lugar que cabe na rotina e no bolso. É gratuito.

Hoje, ela entende que a cultura é o seu direito como cidadã, filha e ser humano. Parar de tocar não é uma opção.

– Não vou parar jamais. Se a Ana perder os braços, a gente resolve com as pernas.

E vai continuar mesmo, por ela e pelo pai. Foi José quem apresentou a cultura para a filha, que hoje reflete os seus ideais artísticos. Mas agora os papéis se inverteram: é ela que, com seu violoncelo, toca enquanto ele escuta da cama. Assim como o pai fazia quando ela estava no berço.

– Muitos flashbacks.

Com a voz embargada, ela garante que irá fazer o que não conseguiu na infância: não deixar o medo paralisar. Fazer a própria vontade.

Como a alma do Callum, Ana ainda vai ajudar a sustentar a casa, mas enquanto harmoniza seus sonhos e emoções.

Emoções que, dos corredores do Projeto Guri às vielas de Heliópolis e o caos urbano, podem ser ouvidas no infinito som do violoncelo soando.

logo-guri
Saiba mais

O Guri é um programa de educação musical e inclusão sociocultural organizado pelo Governo do Estado de São Paulo e a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado, gerido pela organização social Santa Marcelina Cultura.

A iniciativa gratuita oferece, para estudantes de 6 a 18 anos, uma rede de apoio com profissionais especializados e uma oportunidade de crescimento cultural e social por meio da música.

Conheça mais sobre o projeto neste link