Por Sofia Marchetti, Verônica Nunes e Yasmim Santos

#NãoFoiResistência
#NãoFoiPisoteamento
#NãoFoiSocorro

Maria Cristina, 44, tem essas três hashtags marcadas no dorso da mão, no coração e na alma. Há quatro anos, no dia 1º de dezembro de 2019, o filho Denys Henrique, de apenas 16 anos, foi brutalmente assassinado pela Polícia.

Desde o dia em que teve de reconhecer o corpo do filho no necrotério, sua vida não foi mais a mesma. Alguns fios brancos surgiram, contrastando com o cabelo preto e a pele morena, e os olhos, também pretos, estão sempre inchados, de tanto chorar.

Cristina sempre sonhou em ser mãe e constituir uma grande família. Em razão de um mioma, que a obrigou a tirar o útero, o colo do útero e as trompas, ela teve de desistir do desejo de ter seis filhos e ficou com "apenas" quatro: Daniel (25), Danylo, (23), Denys (16) e Sabrina (12).

A única gravidez planejada foi a do adolescente, porque ela sentiu que precisava de um companheiro. E ele exercia muito bem essa função. Era o filho mais próximo, fazia cafuné na mãe todas as noites, tirava várias fotos e incentivava a sua independência.

Ainda é fresco na memória de Cristina a felicidade e alegria que ele exalava na casa – ou em qualquer ambiente em que estivesse.

Apesar da pouca idade, Denys já trabalhava com limpeza de estofados. Queria guardar dinheiro para fazer uma festa de 18 anos e para comprar uma moto.

Fazia pouco tempo que a família havia se mudado da Brasilândia para o Bairro do Limão, zona norte de São Paulo. Cristina ficou com medo do filho "se perder" no mundo e resolveu morar em um lugar melhor. E tudo estava bem, até o dia 30 de novembro.

A última vez que viu Denys foi quando ele levou um pastel e um caldo de cana para ela almoçar no trabalho. A última vez que ouviu a sua voz foi quando ele ligou para avisar que havia comprado uma boneca para a irmã.

Ele não avisou a mãe que ia sair do trabalho e atravessar a cidade para curtir o Baile da 17, também conhecido como Dz7, na favela de Paraisópolis, zona sul. Aos prantos, ela recorda como foram as primeiras horas sem notícias dele.

– Acordei às 6h. A primeira coisa que fiz foi ver se ele estava na cama. Mas estava do mesmo jeito que ele tinha deixado, bem arrumadinha.

A mesa, com o café e o bolo de caco preferido do menino e da mãe, já estava esfriando.

Cristina só teve notícias do filho às 8h da manhã. Recebeu uma ligação para ir até a UPA do Hospital Campo Limpo. Chegando lá, soube que o filho foi morto pisoteado, em uma "Operação Pancadão", da Polícia Militar.

Não conseguiu processar direito a informação e teve de ir à delegacia mais próxima, fazer um Boletim de Ocorrência.

Na delegacia, Cristina viu, na televisão, o tumulto e os vídeos que começaram a circular sobre a ação. Ficou descrente com o que estava sendo dito. Começou a desconfiar que havia algo errado. A fome por justiça surge.

– Minha mente ficou perturbada. Foram dias que deitava na cama e via o meu filho deitado no chão, com um monte de gente pisando em cima. Fiquei pensando: "Meu filho sofreu, meu Deus! Quebraram todos os ossinhos dele".

Com a ajuda do CAAF (Centro de Antropologia e Arqueologia Forense), da Unifesp, no decorrer dos dias, descobriu a verdade. Denys não tinha sido pisoteado. A Polícia que ela tanto admirava havia matado o seu filho.

– Ele me pediu tanto uma bicicleta e não dei. Depois tive que comprar um caixão.

Cristina resolveu ir a fundo para reconstruir o que havia acontecido em Paraisópolis.

Entre 3h48 e 4h09 da madrugada do dia 1º de dezembro, a comunicação com a Central de Operação foi interrompida e os policiais cercaram o quarteirão central do baile, aos gritos e ameaças, com bombas de gás lacrimogêneo e de "efeito moral", tiros de bala de borracha, golpes de cassetete e gás de pimenta.

Uma parte da multidão, estimada em cerca de 5 mil pessoas, correu para a Viela do Louro, na travessa da Rua Ernest Renan, que tem apenas 2,78 metros de largura na entrada e 1,71 metro na saída. Mas ela havia sido bloqueada por viaturas e as pessoas ficaram encurraladas.

A causa do óbito de oito dos nove mortos naquela noite, incluindo Denys, foi asfixia mecânica por sufocamento indireto. Ela acontece devido à compressão do corpo ao ponto de o tórax ser impedido de realizar os movimentos necessários à respiração.

Diferente do que alega a Polícia, #NãoFoiResistência, porque os vídeos mostram que não houve força contrária à ação. Os frequentadores se dispersaram depois da ofensiva policial.

#NãoFoiPisoteamento, porque os laudos necroscópicos não dão essa certeza, mas é fato que os jovens morreram em poucos minutos, vítimas de asfixia, no interior da viela.

#NãoFoiSocorro, porque na hora que os policiais levaram os nove na viatura, às 4h43, sob a premissa de prestar ajuda urgente, eles já estavam mortos há 29 minutos. Os agentes ainda disseram que estavam cercados por mil indivíduos e tinham de ir logo, mas vídeos mostram as ruas vazias.

– O Estado tirou de nós o direito até de viver o luto. Hoje, o meu luto é a luta.

Depois de tudo, Cristina se sentia incompreendida e afastou-se da família e até dos filhos. Ela deixou o emprego como vendedora e não conseguiu mais voltar. Enfrentou uma pandemia na busca por justiça, equilibrando o isolamento e as saídas de máscara.

– O que me mantém de pé é a luta por justiça, mesmo que ela não me alcance, porque ela não vai chegar, nunca mais, porque nunca mais vou ter meu filho. Mas preciso honrar a memória dele.

Ela está na batalha para que os 12 policiais réus deixem de trabalhar administrativamente na corporação e sigam para júri popular, pela ação que ficou conhecida como o Massacre de Paraisópolis.

Hoje, Cristina admite que, apesar da luta ser a sua vida, ela é cansativa. Exaustiva. Muitas vezes ela já pensou em desistir por não conseguir justiça, por não darem importância à morte de seu filho.

Quando questionada sobre a última vez que pensou em suicídio, não hesitou em responder:

– Ontem – dia 23 de outubro, ironicamente uma segunda-feira, quando tudo deveria recomeçar, não terminar.

A exaustão torna-se revolta toda vez que ela encara a dura realidade de injustiça no Brasil. Todos os dias, ela tem de lembrar quem está enfrentando, quem é o verdadeiro inimigo.

– Você está lutando contra quem? Contra um Estado que é forte, contra um sistema que é forte.

Cristina passou a ter medo de quem antes representava segurança para ela e a família, os policiais. Pagar impostos é algo que lhe proporciona revolta, pois entende que está contribuindo com o sistema que assassinou Denys.

São 4 anos duros, de muitas batalhas perdidas e outras vencidas.

A depressão e a ansiedade começaram a fazer parte de sua vida e ela precisou recorrer ao uso de remédios psiquiátricos. Sua mente queria matá-la. Mas Cristina buscou ajuda. Já faz um tempo que ingressou na terapia, graças à solidariedade de pessoas que se compadeceram com a sua situação.

Tudo o que ela precisava era de um colo. De um lugar para desmoronar. Tirar a armadura de mulher guerreira que veste quando sai para gritar nas ruas.

Antes, dizia ser uma mulher que tinha vida, gosto, prazer de fazer as coisas mais simples, como tomar uma cervejinha. Mas agora até a bebida ficou com gosto de dor, revolta e descontentamento.

– Aquela Maria Cristina, que era filha, irmã, mãe, não existe mais. Essa que está na sua frente é a Maria Cristina que luta por justiça. A outra eles mataram junto com o meu filho.

A filha, Sabrina, também lhe dá força e motivação para continuar. Apesar de ter apenas 12 anos, Cristina faz questão de levá-la às manifestações, debates e palestras. Ela gostaria de ter tido conhecimento desses temas quando mais nova. Infelizmente, teve de aprender da forma mais dura.

Além da companhia, a caçula assumiu a função de companheira. Hoje é ela quem faz cafuné para a mãe conseguir dormir.

São esses momentos que a mantém de cabeça erguida. Afinal, ela precisa ser vista, ouvida. Precisa de justiça. Mas também de carinho e amparo. De raiva, já basta a dela.

Enquanto espera a condenação dos assassinos do filho – os 12 agentes e os outros 19 que estiveram na ação, mas não se tornaram réus –, marca na pele a saudade e a revolta. Tatuou o nome do filho, um anjo debruçado sobre sua lápide e a frase que retrata a perda.

– Sua morte é a prova da injustiça humana.

Tinha vontade de tatuar uma fênix, mas ela não precisou. O desenho foi cravado em seu coração no dia 1º de dezembro de 2019.

– Fizeram a fênix em mim, porque quando eles mataram meu filho, tive que ressurgir das cinzas, do pó. Não fui eu, foram eles que tatuaram. É uma cicatriz para a vida toda – declarou com a voz embargada, fechando o punho direito e batendo-o contra o coração.

Mesmo dizendo que perdeu o sentido da própria existência, precisou se reerguer. Ela sente e sabe que tem uma missão a ser cumprida. E é por isso que continua, por ela, por Denys e para que outras mães não passem pelo mesmo.

– Quero conseguir dar sentido para minha vida, fazer trabalho social. Ajudar crianças, adolescentes e mães. Quando as mães se encontram, a gente compartilha a mesma dor.

Nos momentos sufocantes, uma prece também surge. Maria Cristina Quirino quer paz. Apenas um desejo. Uma palavra. Mas quando?

Simples: quando a verdade deixar de ser despedaçada.

"Mãe negligente". "Se estava no baile funk, não era boa gente". "Culpa da mãe". "Ele estava metido em coisa errada". Julgamentos mentirosos chegam nos comentários das redes sociais e nas ruas. A honra de Denys Henrique é rechaçada.

Ela não luta só por justiça, mas pela dignidade do filho, pelos 16 anos de boas memórias.

O duelo entre a luta e a paz está entrelaçado, junto com os seus trabalhos, como pesquisadora do CAAF, nas pesquisas em campo, nas participações de fóruns e manifestações. O resultado só o futuro dirá.

Mas enquanto enfrenta seus oponentes, Cristina se agarra em todas as crenças possíveis, na fé. Tenta encontrar seu menino em todos os lugares.

– Passei a acreditar em coisas que não acreditava antes.

O Espiritismo é um dos seus novos caminhos para a paz. Está na expectativa de receber uma carta psicografada do filho. Enquanto isso, tira força dos sonhos, cada vez mais reais, que tem com Denys quando coloca o rosto no travesseiro à espera daquele cafuné.

– Acordei de manhã, olhei para o lado e ele estava deitado do meu lado, dormindo, aquele sono lindo. Eu abri e fechei os olhos umas quatro vezes e falava "meu filho, está dormindo que nem um anjinho". Fui pegar meu celular para tirar foto, quando virei, já não estava mais – com um sorriso doce e melancólico, viajou o olhar pelas recordações.

O passado e o presente se misturam tentando afagar suas memórias. Mas a realidade sempre volta. A fome aumenta. Ele se foi. A fome machuca. Alguns vazios nunca vão ser preenchidos.

Mas, ela tem de continuar, por ela, pelos dois… Pelos quatro filhos.

Movimento
Saiba mais

O Movimento de Familiares das Vítimas do Massacre em Paraisópolis surgiu após a morte de 9 jovens no dia 1 de dezembro de 2019 no Baile da 17. O movimento luta contra as injustiças cometidas por policiais nesse caso cruel de assassinato.

Os familiares estão diariamente nas ruas promovendo atos, manifestações, palestras e discussões sobre a violência policial no estado de São Paulo e pedindo justiça pelo caso.

Conheça mais sobre o projeto neste link