Por Nathan Raileanu, Verônica Nunes e Yasmim Santos
– Papai do céu, quero acordar menina, por favor.

Essa era a oração que fazia todas as noites antes de dormir. Ao amanhecer, o primeiro ato do dia era levantar a coberta e descobrir se o milagre havia sido atendido. Não era, e por anos não foi.

A única reação possível era chorar. Foram 39 anos chorando. Mas de quem é esse choro?

Em um dia cinza, no sétimo andar de um prédio moderno e branco, uma porta se abre. Um sorriso marcado pelo batom vermelho cativa quem observa. O cabelo longo com ondas lembra o de uma sereia. Então uma voz delicada e tranquila reverbera:

– Maria Eduarda, prazer.

Mesmo com um sorriso, os olhos e as mãos transmitiam melancolia e agitação. Eduarda, como gosta de ser chamada, teve de apresentar primeiro quem era no passado – o Eduardo.

Ela nunca aceitou o corpo que tinha, mas teve de manter isso em segredo. Por isso, toda a infância, a adolescência e parte da vida adulta são contadas no masculino, a partir das vivências do homem que ela tentou – e muito – ser.

Eduardo foi um escudo ao longo dos anos, mas deixava brechas. Não ganhava bonecas, então as montava. Passava os batons da mãe, mas tinha de tirar. Os vestidos e saltos que colocava, logo eram escondidos no guarda-roupa.

Ele foi se encolhendo até que… levou um chute, literalmente. Forte. Maldoso. No corredor da escola. Foi – junto com o sonho de ser mulher – empurrado para um casulo escuro e apertado.

O que era para ser a adolescência com as tão sonhadas cartas do primeiro amor e festas do pijama, não aconteceu. A escola transformou-se em angústia. Para não sofrer mais, escolheu voltar para casa e não sair mais. Abandonou os estudos.

Eduardo sobreviveu por anos trancado no quarto, sozinho.

A única forma de recuperar o tempo perdido foi fazer supletivo. Depois, também tomou coragem e começou a faculdade de Marketing. Não satisfeito, fez uma pós em Big Data, Comunicação e Marketing. Tornou-se o primeiro pós-graduado da família.

Nessa jornada, decidiu encarar outro aspecto da própria vida: a fé. Pesquisou sobre sua história e descobriu que era criptojudeu, ou seja, que a família foi obrigada a se distanciar da religião por causa da Inquisição.

Decidiu voltar ao judaísmo. Começou na dança folclórica israeli, fez parte do Movimento Juvenil Judaico Chazit Hanoar e frequentou sinagogas. Cantor, ele se apresentou nas Macabíadas (Jogos Olímpicos da Comunidade Judaica) em Israel, em 2013.

Foi após o evento que um tribunal rabínico discutiu sua conversão. Eduardo passou a ter um nome em hebraico: Davi.

Apesar da conquista, na religião, na faculdade, no trabalho, e até mesmo na comunidade LGBTQIAPN+, continuava sendo visto da mesma forma: um menino gay, reservado. Mas ele sabia que não era.

A Eduarda sempre existiu e vai existir até o último bater de asas das borboletas. Isso ficou evidente quando, já adulto, ganhou de presente do namorado um biquíni vermelho e se olhou no espelho.

– Eu não via mais Eduardo ali, eu olhei profundamente no olho da Duda. É como se eu olhasse uma menina na masmorra – segurou a respiração relembrando as emoções que sentiu naquele dia.

Ele tinha que resgatar aquela princesa, a Duda, aos poucos, pois a escuridão daquela prisão sufocava-a. A depressão e os pensamentos de que poderia machucar a si mesmo começaram a ocupar aquele espaço. Dali em diante, decidiu fazer um corte no casulo.

Deu o mais importante dos passos. Deixou o Eduardo para trás e encarou a verdade que sempre soube: era uma mulher trans. Agora não é mais ele, é ela.

Mas não seguiu sem se despedir do "irmão gêmeo", do protetor que a acompanhou nessa jornada.

– Eduardo, te agradeço muito por todo o cuidado, todo o carinho que teve comigo. Você foi o neto preferido da vó Rosa, um irmão muito carinhoso e um filho responsável. Você vai estar sempre dentro de mim e prometo guardá-lo com muito carinho, mas agora é hora da borboleta voar honrando toda a sua história.

Eduarda começou a viver um sonho, mas que era limitado – só ela e os amigos próximos do Instagram sabiam que havia uma mulher ali. As laces e a maquiagem ficavam retidas naquele mesmo apartamento moderno, no sétimo andar.

Eduarda precisava de apenas uma palavra para sair por completo do casulo: o sim da mãe. Foram dias de teorias e medos, até que ela tomou coragem de admitir que o Eduardo, com quem a família conviveu por longos anos, não existia mais.

Ela esperava que, dali para frente, as coisas se tornassem um pesadelo. Porém, foi surpreendida. A mãe, religiosa, ouviu tudo atentamente e foi dando conselhos. Desejou que a filha fosse feliz. A Eduarda estava, oficialmente, livre para voar.

Crédito: arquivo pessoal

E, agora, para onde ir? São tantos caminhos. O primeiro passo foi gritar ao mundo o seu verdadeiro eu, por meio das redes sociais.

Quem assume, agora, é uma mulher em construção. Que roupas vestir? Quais maquiagens usar? Que cabelo combina mais? Qual o sentido do salto alto? Estrias são um problema, como assim?

– Sou vazia de gênero. Não fui acostumada a falar assim, a agir assim. Fui impedida de ser assim. Estou construindo uma nova mentalidade.

Eduarda está no processo de autoconhecimento. Sente que está vivendo finalmente a adolescência que sempre mereceu.

Ela já faz acompanhamento com uma nutricionista e endocrinologista, para perder os quilos necessários e começar a terapia hormonal sem sobrecarregar o fígado. O psicólogo e o psiquiatra também ajudam no progresso.

Os passos são de formiguinha, ainda mais pelos altos preços dos procedimentos. Contudo, uma coisa é certa: o corpo vai mudar, ele precisa mudar. O que importa para Eduarda é que o grande objetivo não seja esquecido: a cirurgia de readequação de gênero.

Ela vai se transformar por completo, e faz questão disso, leve o tempo que for. Afinal, ela nunca imaginou viver o que está vivendo.

Hoje ela tem estabilidade financeira. Tem um amor para chamar de seu. Já é Eduarda no trabalho. A mãe ajuda a escolher as laces. Recebeu muito mais apoio e carinho do que esperava. É um exemplo de perseverança.

Mesmo diante das coisas boas, Eduarda sabe que o caminho é árduo, cheio de disforias e de objetificação. Ela entende que, hora ou outra, vai se deparar com o novo, com a mudança, com uma fome de reconhecimento diferente.

Apesar disso, garante que vai continuar.

– Eu quero ser uma velhinha. Quero ser mulher até o fim.

Sua maior inspiração é um poema de Cora Coralina, que ela tem na ponta da língua e recita com seriedade, como um mantra.

"Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça."

É nessa mesma direção que ela projeta a fé. Se perceber que não há espaço para a Eduarda, ela vai se retirar.

– Não vai ser uma barreira para mim. Sigo sem judaísmo. É dolorido, porque lutei muito para voltar, mas não vou deixar mais nada me parar.

Davi vai passar a ser Amit Bat Sarah (Amit filha de Sarah, pois todas as mulheres são descendentes da matriarca do povo judeu), dentro ou fora da sinagoga. Amit vai plantar rosas no vazio que sentiu todos esses anos.

– Tenho um buraco na minha história, em que estava escondida. Estou em uma metamorfose.

Ela tem paciência para que tudo o que planeja vire realidade, mas é firme: há urgência. Ela tem pressa em experimentar, finalmente, uma vida plena.