Por Eduardo Nobel, Luiz Henrique Cisterna e Yasmim Santos

Por que eu, Deus? Qual o sentido de passar por tantas provações? É possível que uma pessoa tenha vindo à Terra destinada a sofrer? Se perguntado sobre isso há oito anos, David Almeida, 23, certamente responderia que sim.

O corpo moreno todo tatuado e os olhos castanhos profundos mostram que ele viveu muitas emoções, em pouco tempo. Quando criança, ainda em Araraquara, interior de São Paulo, cresceu em meio às discussões do pai e da mãe, solitário. Não terminou os estudos, parou na oitava série.

Ainda adolescente, começou a sair à noite. Conheceu uma realidade sombria, mas que trazia um êxtase momentâneo, uma euforia. Não podia voltar para casa tarde, já que o portão tinha hora para estar trancado, então dormia na rua, em uma mansão abandonada.

Foi o primeiro contato com a rua. Não demorou muito e, aos 15 anos, saiu de casa. Passou três meses na casa do irmão, mas, em razão dos vícios, saiu, sem rumo.

O pai estava na cidade de São Paulo, trabalhando no time de futebol Água Santa. Ligou para ele e pediu uma nova esperança. Para a sua felicidade, ouviu um sonoro "vem para cá, vou te ajudar". Foi.

Prestes a fazer 16 anos, foi pulando de cidade em cidade em um trem cargueiro, fazendo parada apenas nos albergues. Quando chegou, tentou contatar o pai. Ligou. Ligou. Ligou. Caixa postal. Foi nocauteado pela realidade: estava sozinho, na rua.

De 2015 a 2018, vagou pelas ruas de São Paulo.

Agitado, relembra a vez que teve vontade de comer uma bolacha, mas não tinha nem um real no bolso. No começo, tinha vergonha de pedir. Teve de escolher: enfrentar os olhares de julgamento ou morrer de fome. Isso quando a dor do estômago não era combinada à do frio.

– Lembro uma vez que estava chovendo muito e eu dormia lá na Sé. Estava encharcado, não tinha outra roupa. Sei que procurei um papelão, uma coberta e dormi tremendo de frio. Só falava: "Deus, chega logo de manhã".

Dor. Frio. Gelo. Todas as sensações atravessavam o corpo dele. Havia uma palavra que rasgava David por inteiro: indigno. Indigno de conversar com alguém, de entrar livremente nos locais. Era impuro, por estar usando droga e estar na rua.

– Não tinha prazer de olhar no espelho – recorda.

Sentia por não ter com quem desabafar sobre isso, a quem pedir o abraço que tanto faltava.

– Tinha saudade da minha mãe, do meu pai, porém não havia ninguém ali comigo. Queria falar com alguém sobre a dor que estava dentro de mim, mas, muitas vezes, a pessoa do meu lado estava sofrendo mais do que eu.

Tentou ficar em albergues. Deparou-se com um tratamento desumano e estruturas precárias. A falta de liberdade, entretanto, era o que mais pesava.

Em 2019, perdeu totalmente a liberdade. Envolveu-se com coisas erradas e foi preso.

Na cadeia, não recebia visitas. Não acreditava que tudo aquilo estava acontecendo. Chorava sozinho. Passava por muita humilhação. A gota d'água foi quando teve paralisia facial na metade do rosto.

Ele ajoelhou e desabou em oração: "Jesus, não estou aguentando. Vou me matar. Me carrega no colo, porque não aguento mais andar, já estou até engatinhando".

Em duas semanas, ele conseguiu ir para o semiaberto. Ficou pouco mais de um ano no regime e, quando saiu, resolveu mudar. Mas não olha para trás apenas com rancor, pelo contrário.

– Agradeço a Deus por tudo o que vivi.

Desde então, ele faz tudo diferente.

Em 2022, David começou a participar das campanhas de doação de alimentos da Paróquia São Miguel Arcanjo, ao lado do padre Júlio Lancelotti. Ele distribuía café da manhã para as pessoas em situação de rua.

Antigamente era ele quem recebia o café. Agora, no final de 2023, escolheu um novo rumo e faz parte do Projeto Caminhos, uma iniciativa que também oferece alternativas mais dignas para a população de rua, desde apoio financeiro até oportunidade de trabalho.

Um dos seus maiores propósitos é esse: dar aos outros a ajuda que não recebeu, a cidadania que não teve.

– Gosto de dar essa atenção porque já estive nesse lugar. Sinto a necessidade de trazer ânimo para esses moradores.

Depois de sair das ruas, foi capaz de perceber que o que mais o machucava era a frieza das pessoas e o olhar de desprezo. Elas dilaceravam seu coração sem dizer uma única palavra.

Por isso, carrega uma filosofia: "O dinheiro compra Judas, mas não compra almas".

– O dinheiro pode dar comida aos moradores de rua, mas não vai ter o mesmo efeito que o abraço, o carinho e o amor – explica.

Seu jeito brincalhão e extrovertido é uma forma de oferecer a atenção que essas pessoas precisam. A abordagem descontraída, no dia a dia, não é apenas uma expressão de personalidade, mas uma estratégia consciente para proporcionar um alívio. Ele carrega o branco da paz no sorriso.

– Faço isso porque motivos para chorar e ficar triste a gente já tem muitos, mas razões para tirar o sorriso das pessoas são mais escassas.

David reconhece que ainda tem muito a aprender. Seus vícios são obstáculos recorrentes. Mas, mesmo depois de todo o deserto que viveu, ele conseguiu fazer algo por si: conquistou o próprio lar.

Há um ano, ele paga caro no aluguel. São 800 reais por um quarto e um banheiro, o que não deixa de ser gratificante. Ele reconhece que cada etapa da sua vida o transformou – e ainda transforma – em alguém melhor.

O "corre" continua, difícil e árduo. Porém ele é um homem disposto a não parar, na mente e no corpo. É por isso que David quer um projeto próprio.

Quando questionado sobre um sonho, não titubeou: "Quero ajudar a África, mas não só com caminhões de alimentos. As pessoas precisam de um abraço, um conselho, um olhar no olho".

David é uma prova de sobrevivência e amparo. Teve a chance de reescrever sua história. E segue: construindo novas vírgulas, pontos, frases e capítulos.

Quer ser pai, ter sua própria ação social, dar o pão e estar mais próximo da Igreja. Tem certeza de que todo mundo tem um dom para ser despertado.

Ele recebeu o seu, quando estava na rua, abandonado e, depois, encarcerado. Hoje, pode levantar a cabeça e viver o novo. E ele vive.

– Enquanto há vida, há esperança.

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Saiba mais

O Caminhos é um projeto que convive com a população de rua e busca alternativas dignas para as suas necessidades. As ações variam desde o aluguel temporário de um quarto até a compra de uma passagem ou de remédios.

Com a arrecadação de doações e ajudas diretas, a iniciativa consegue fazer uma mudança efetiva na vida dessas pessoas.

Conheça mais sobre o projeto neste link